Boa
Nova - Humberto de Campos –
AMOR
E RENÚNCIA
O
manto da noite caía de leve sobre a paisagem de Cafarnaum e Jesus, depois de
uma das grandes assembléias populares do lago, se recolhia à casa de Pedro em
companhia do apóstolo. Com a sua palavra divina havia tecido luminosos
comentários em torno dos mandamentos de Moisés; Simão, no entanto, ia pensativo
como se guardasse uma dúvida no coração.
Inquirido
com bondade pelo Mestre, o apóstolo esclareceu:
—
Senhor, em face dos vossos ensinamentos, como deveremos interpretar a vossa
primeira manifestação, transformando a água em vinho, nas bodas de Canaã? Não
se tratava de uma festa mundana? O vinho não iria cooperar para o
desenvolvimento da embriaguez e da gula?
Jesus
compreendeu o alcance da interpelação e sorriu.
—
Simão — disse ele —, conheces a alegria de servir a um amigo?
Pedro
não respondeu, pelo que o Mestre continuou:
—
As bodas de Canaã foram um símbolo da nossa união na Terra. O vinho, ali, foi
bem o da alegria com que desejo selar a existência do Reino de Deus nos
corações. Estou com os meus amigos e amo-os a todos. Os afetos d'alma, Simão,
são laços misteriosos que nos conduzem a Deus. Saibamos santificar a nossa
afeição, proporcionando aos nossos amigos o máximo da alegria; seja o nosso
coração uma sala iluminada onde eles se sintam tranquilos e ditosos. Tenhamos
sempre júbilos novos que os reconfortem, nunca contaminemos a fonte de sua
simpatia com a sombra dos pesares! As mais belas horas da vida são as que
empregamos em amá-los, enriquecendo-Ihes as satisfações íntimas.
Contudo,
Simão Pedro, manifestando a estranheza que aquelas advertências lhe causavam,
interpelou ainda o Mestre, com certa timidez:— E como deveremos proceder quando
os amigos não nos entendam, ou quando nos retribuam com ingratidão? Jesus pôs
nele o olhar lúcido e respondeu:
—
Pedro, o amor verdadeiro e sincero nunca espera recompensas. A renúncia é o seu
ponto de apoio, como o ato de dar é a essência de sua vida. A capacidade de
sentir grandes afeições já é em si mesma um tesouro. A compreensão de um amigo
deve ser para nós a maior recompensa. Todavia, quando a luz do entendimento
tardar no espírito daqueles a quem amamos, deveremos lembrar-nos de que temos a
sagrada compreensão de Deus, que nos conhece os propósitos mais puros. Ainda
que todos os nossos amigos do mundo se convertessem, um dia, em nossos
adversários, ou mesmo em nossos algozes, jamais nos poderiam privar da alegria
infinita de lhes haver dado alguma coisa!...
E
com o olhar absorto na paisagem crepuscular, onde vibravam sutis harmonias,
Jesus ponderou, profeticamente:
—
O vinho de Canaã poderá, um dia, transformar-se no vinagre da amargura;
contudo, sentirei, mesmo assim, júbilo em sorvê-lo, por minha dedicação aos que
vim buscar para o amor do Todo-Poderoso. Simão Pedro, ante a argumentação
consoladora e amiga do Mestre, dissipou as suas derradeiras dúvidas, enquanto a
noite se apoderava do ambiente, ocultando o conjunto das coisas no seu leque
imenso de sombras. Muito tempo ainda não decorrera sobre essa conversação,
quando o Mestre, em seus ensinos, deixou perceber que todos os homens, que não
estivessem decididos a colocar o Reino de Deus acima de pais, mães e irmãos
terrestres, não podiam ser seus discípulos.
No
dia desses novos ensinamentos, terminados os labores evangélicos, o mesmo
apóstolo interpelou o Senhor, na penumbra de suas expressões indecisas:
—
Mestre, como conciliar estas palavras tão duras com as vossas anteriores
observações, relativamente aos laços sagrados entre os que se estimam?! Sem
deixar transparecer nenhuma surpresa, Jesus esclareceu:
—
Simão, a minha palavra não determina que o homem quebre os elos santos de sua
vida; antes exalta os que tiverem a verdadeira fé para colocar o poder de Deus
acima de todas as coisas e de todos os seres da criação infinita. Não constitui
o amor dos pais uma lembrança da bondade permanente de Deus? Não representa o
afeto dos filhos um suave perfume do coração?! Tenho dado aos meus discípulos o
título de amigos, por ser o maior de todos.
O
Evangelho — continuou o Mestre, estando o apóstolo a ouvi-lo atentamente — não
pode condenar os laços de família, mas coloca acima deles o laço indestrutível
da paternidade de Deus. O Reino do Céu no coração deve ser o tema central de
nossa vida. Tudo mais é acessório. A família, no mundo, está igualmente
subordinada aos imperativos dessa edificação. Já pensaste, Pedro, no supremo
sacrifício de renunciar? Todos os homens sabem conservar, são raros os que
sabem privar-se. Na construção do Reino de Deus, chega um instante de
separação, que é necessário se saiba suportar com sincero desprendimento. E
essa separação não é apenas a que se verifica pela morte do corpo, muitas vezes
proveitosa e providencial, mas também a das posições estimáveis no mundo, a da
família terrestre, a do viver nas paisagens queridas, ou, então, a de uma alma
bem-amada que preferiu ficar, a distância, entre as flores venenosas de um
dia!...
Ah!
Simão, quão poucos sabem partir, por algum tempo, do lar tranquilo, ou dos
braços adorados de uma afeição, por amor ao reino que é o tabernáculo da vida
eterna! Quão poucos saberão suportar a calúnia, o apodo, a indiferença, por
desejarem permanecer dentro de suas criações individuais, cerrando ouvidos à
advertência do céu para que se afastem tranquilamente!... Como são raros os que
sabem ceder e partir em silêncio, por amor ao reino, esperando o instante em
que Deus se pronuncia! Entretanto, Pedro, ninguém se edificará, sem conhecer
essa virtude de saber renunciar com alegria, em obediência à vontade de Deus,
no momento oportuno, compreendendo a sublimidade de seus desígnios. Por essa
razão, os discípulos necessitam aprender a partir e a esperar onde as
determinações de Deus os conduzam, porque a edificação do Reino do Céu no
coração dos homens deve constituir a preocupação primeira, a aspiração mais
nobre da alma, as esperanças centrais do espírito!...
Ainda
não havia anoitecido. Jesus, porém, deu por concluídas as suas explicações,
enquanto as mãos calosas do apóstolo passavam, de leve, sobre os olhos úmidos.
Dando o testemunho real de seus ensinamentos, o Cristo soube ser, em todas as
circunstâncias, o amigo fiel e dedicado. Nas elucidações de João, vemo-lo a
exclamar:
—
"Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor;
tenho-vos chamado amigos, porque vos revelei tudo quanto ouvi de meu Pai!"
E, na narrativa de Lucas, ouvimo-lo dizer, antes da hora extrema:
—
"Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes da minha
paixão."
Ninguém
no mundo já conseguiu elevar, à altura em que o Senhor as colocou, a beleza e a
amplitude dos elos afetivos, mesmo porque a sua obra inteira é a de reunir,
pelo amor, todas as nações e todos os homens, no círculo divino da família
universal. Mas, também, por demonstrar que o reino de Deus deve constituir a
preocupação primeira das almas, ninguém como ele soube retirar-se das posições,
no instante oportuno, em obediência aos desígnios divinos. Depois da magnífica
vitória da entrada em Jerusalém, é traído por um dos discípulos amados;
negam-no os seus seguidores e companheiros; suas ideias são tidas como
perversoras e revolucionárias; é acusado como bandido e feiticeiro; sua morte
passa por ser a de um ladrão.
Jesus,
entretanto, ensina às criaturas, nessa hora suprema, a excelsa virtude de
retirar-se com a solidão dos homens, mas com a proteção de Deus. Ele, que
transformara toda a Galiléia numa fonte divina; que se levantara com
desassombro contra as hipocrisias do farisaísmo do tempo; que desapontara os
cambistas, no próprio templo de Jerusalém, como advogado enérgico e superior de
todas as grandes causas da verdade e do bem, passa, no dia do Calvário, em
espetáculo para o povo, com a alma num maravilhoso e profundo silêncio. Sem
proferir a mais leve acusação, caminha humilde, coroado de espinhos, sustendo
nas mãos uma cana imunda à guisa de cetro, vestindo a túnica da ironia, sob as
cusparadas dos populares exaltados, de faces sangrentas e passos vacilantes,
sob o peso da cruz, vilipendiado, submisso.
No
momento do calvário, Jesus atravessa as ruas de Jerusalém, como se estivesse
diante da humanidade inteira, sem queixar-se, ensinando a virtude da renúncia
por amor do Reino de Deus, revelando por essa a sua derradeira lição.
http://www.acasadoespiritismo.com.br/temas/amor.htm
Fiquem
com Deus
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